Escândalo político e cultural
As agências noticiosas que abastecem os órgãos de comunicação social portugueses parecem ter-se esquecido de um gravíssimo escândalo político e cultural, que continua a preocupar universidades, centros de investigação e tantas outras instituições culturais europeias e de fora da Europa e respectivos membros, em que o principal protagonista é o governo do Estado de Baden-Württemberg, na Alemanha.
Face à gravidade do que se está a passar, segundo verificamos pelos artigos, cartas, comentários e outras tomadas de posição junto do Primeiro-Ministro do referido Estado, no sentido de o demover, bem como ao seu governo, do brutal atentado programado contra grande parte dos preciosos fundos da Biblioteca de Karlsruhe, que, apesar de pertencerem ao referido estado da República Federal Alemã, onde se encontram, culturalmente, pertencem ao património mundial, não podemos ficar em silêncio.
O artigo de Jean-Claude Schmitt, publicado no Le Monde, no dia 6 deste mês, elucida-nos sobre o essencial do miserável – apesar de avultado - negócio, que estava prestes a consumar-se: o governo estadual de Baden-Württemberg cederia à família grã-ducal de Baden 3 500 dos 4 200 manuscritos, isto é, livros manuscritos medievais, que a Biblioteca de Karlsruhe possui, muitos deles recheados de riquíssimas iluminuras, a troco de 70 milhões de euros, cerca de catorze milhões de contos na antiga moeda portuguesa. Terminaria, assim, um longo diferendo entre o governo e esta antiga família que, além de ter sido compensada com a antiga abadia cisterciense de Salem, convertida em escola privada, ainda reclamava objectos de arte e os célebres códices iluminados da abadia de Reichenau, como os de muitas outras, secularizados, em 1803, na sequências das invasões napoleónicas, tendo entrado, finalmente, no domínio público, em 1918.
Dada a magnitude desta indigna acção de política e mercancia anticultural, pouco interessarão argumentos de pormenor que, eventualmente, pudessem ser esgrimidos para tentar justificar o secreto acordo governamental com a mencionada família ducal de Baden.
A maior gravidade desta escandalosa atitude de política anticultural decorre do facto de ser o próprio governo – que deveria ser o principal responsável pela defesa do património cultural dentro do Estado que o elegeu - a promover o desmantelamento da sua principal Biblioteca, transferindo a maior partes destas preciosas obras únicas para a posse de particulares, abrindo, assim, caminho à sua posterior dispersão, através da venda a retalho, em sucessivos leilões lucrativos, por que, fatalmente, haveria de passar.
Além de muitas outras considerações que este lamentável episódio poderia suscitar, é preocupante o desdém com que estes governantes olham para a cultura medieval e o à vontade com que decidem desfazer-se de tão preciosos monumentos culturais, que este ou qualquer outro estado da República Federal Alemã, cujo prestígio científico, técnico, económico e político, há muito nos habituámos a respeitar, jamais conseguiria reunir, deixando-nos uma imagem verdadeiramente negativa, que nunca imaginaríamos ser possível.
Conhecendo o coro de protestos que a notícia provocou, o ministro de estado e dos assuntos culturais anunciou que o governo federal, agora em Berlim, não autorizaria a venda destas obras para o estrangeiro, afirmação que não exclui a possibilidade de venda, a retalho, na Alemanha, continuando, por isso, a pairar sobre esta preciosa Biblioteca o espectro da dispersão de tão notáveis colecções.
Entre as numerosas mensagens dirigidas ao Primeiro Ministro, podemos salientar a do Prof. Doutor Stefano Zamponi, Presidente do Comité Internacional de Paleografia Latina, difundida em alemão, inglês e italiano, que, na qualidade de membro do referido Comité Internacional, subscrevemos e nos apraz divulgar no original italiano:
- «Al Presidente del Consiglio dei Ministri
del Land Baden-Württenberg
Egregio Signor Presidente,
le scrivo per esprimerle vivissima preoccupazione per le sorti dei manoscritti della Badische Landesbibliothek di Karlsruhe.
A nome di tutti i membri del Comité International de Paléographie latine la sollecito a fare ogni tentativo per impedire che i manoscritti della Badische Landesbibliothek siano alienati con grave rischio di dispersione.
Non intendo analizzare i motivi giuridici o economici di tale progetto: desidero solo ribadire che da oltre un secolo in tutta Europa i manoscritti conservati in pubbliche raccolte sono un patrimonio inalienabile, che le biblioteche custodiscono e valorizzano per la comunità scientifica internazionale. Non si può pensare di cedere l'antica biblioteca di Reichenau, così come non si può vendere il Colosseo, né abbattere una chiesa gotica o un bosco di querce secolari.
La prego, faccia in modo che al governo del Baden-Württenberg non si debba applicare il passo della Scrittura "Diviserunt sibi vestimenta mea" (Ps. 21, 19).
Con cordiali saluti
Prof. dr. Stefano Zamponi
Presidente del Comité
International de Paléographie latine».
Com este breve artigo pretendemos fazer-nos eco em Portugal do coro de protestos desencadeado na Europa e fora das fronteiras deste velho continente donde irradiou civilização e cultura para todo o mundo contra tão inaudito atentado cultural que, em segredo, o governo de Baden-Württemberg se propunha perpetrar.
Se este mau exemplo vindo a público tivesse surgido num pequeno e pobre estado do chamado terceiro mundo continuaria a ser grave, mas que tenha sido provocado pelo governo de um Estado da República Federal Alemã é verdadeiramente intolerável e não podemos deixar de unir a nossa voz ao grande coro das instituições internacionais especializadas e de a fazer chegar ao governo do Primeiro-Ministro Öttinger e à Embaixada da Alemanha, em Lisboa
Esperamos que ainda haja bom senso e não se concretize tal atentado contra o referido património cultural - que não é exclusivo deste Estado e da Alemanha, mas pertence a toda a Humanidade - e que este péssimo exemplo, vindo da Alemanha, não prolifere.
José Marques
Prof. Catedrático da Universidade do Porto (ap.)
Membro do Comité International de Paléographie Latine
Membro da Comission Internatonale de Diplomatique
Der Beitrag (verbreitet über Apilist) erschien in der Presse in Braga (Portugal).
As agências noticiosas que abastecem os órgãos de comunicação social portugueses parecem ter-se esquecido de um gravíssimo escândalo político e cultural, que continua a preocupar universidades, centros de investigação e tantas outras instituições culturais europeias e de fora da Europa e respectivos membros, em que o principal protagonista é o governo do Estado de Baden-Württemberg, na Alemanha.
Face à gravidade do que se está a passar, segundo verificamos pelos artigos, cartas, comentários e outras tomadas de posição junto do Primeiro-Ministro do referido Estado, no sentido de o demover, bem como ao seu governo, do brutal atentado programado contra grande parte dos preciosos fundos da Biblioteca de Karlsruhe, que, apesar de pertencerem ao referido estado da República Federal Alemã, onde se encontram, culturalmente, pertencem ao património mundial, não podemos ficar em silêncio.
O artigo de Jean-Claude Schmitt, publicado no Le Monde, no dia 6 deste mês, elucida-nos sobre o essencial do miserável – apesar de avultado - negócio, que estava prestes a consumar-se: o governo estadual de Baden-Württemberg cederia à família grã-ducal de Baden 3 500 dos 4 200 manuscritos, isto é, livros manuscritos medievais, que a Biblioteca de Karlsruhe possui, muitos deles recheados de riquíssimas iluminuras, a troco de 70 milhões de euros, cerca de catorze milhões de contos na antiga moeda portuguesa. Terminaria, assim, um longo diferendo entre o governo e esta antiga família que, além de ter sido compensada com a antiga abadia cisterciense de Salem, convertida em escola privada, ainda reclamava objectos de arte e os célebres códices iluminados da abadia de Reichenau, como os de muitas outras, secularizados, em 1803, na sequências das invasões napoleónicas, tendo entrado, finalmente, no domínio público, em 1918.
Dada a magnitude desta indigna acção de política e mercancia anticultural, pouco interessarão argumentos de pormenor que, eventualmente, pudessem ser esgrimidos para tentar justificar o secreto acordo governamental com a mencionada família ducal de Baden.
A maior gravidade desta escandalosa atitude de política anticultural decorre do facto de ser o próprio governo – que deveria ser o principal responsável pela defesa do património cultural dentro do Estado que o elegeu - a promover o desmantelamento da sua principal Biblioteca, transferindo a maior partes destas preciosas obras únicas para a posse de particulares, abrindo, assim, caminho à sua posterior dispersão, através da venda a retalho, em sucessivos leilões lucrativos, por que, fatalmente, haveria de passar.
Além de muitas outras considerações que este lamentável episódio poderia suscitar, é preocupante o desdém com que estes governantes olham para a cultura medieval e o à vontade com que decidem desfazer-se de tão preciosos monumentos culturais, que este ou qualquer outro estado da República Federal Alemã, cujo prestígio científico, técnico, económico e político, há muito nos habituámos a respeitar, jamais conseguiria reunir, deixando-nos uma imagem verdadeiramente negativa, que nunca imaginaríamos ser possível.
Conhecendo o coro de protestos que a notícia provocou, o ministro de estado e dos assuntos culturais anunciou que o governo federal, agora em Berlim, não autorizaria a venda destas obras para o estrangeiro, afirmação que não exclui a possibilidade de venda, a retalho, na Alemanha, continuando, por isso, a pairar sobre esta preciosa Biblioteca o espectro da dispersão de tão notáveis colecções.
Entre as numerosas mensagens dirigidas ao Primeiro Ministro, podemos salientar a do Prof. Doutor Stefano Zamponi, Presidente do Comité Internacional de Paleografia Latina, difundida em alemão, inglês e italiano, que, na qualidade de membro do referido Comité Internacional, subscrevemos e nos apraz divulgar no original italiano:
- «Al Presidente del Consiglio dei Ministri
del Land Baden-Württenberg
Egregio Signor Presidente,
le scrivo per esprimerle vivissima preoccupazione per le sorti dei manoscritti della Badische Landesbibliothek di Karlsruhe.
A nome di tutti i membri del Comité International de Paléographie latine la sollecito a fare ogni tentativo per impedire che i manoscritti della Badische Landesbibliothek siano alienati con grave rischio di dispersione.
Non intendo analizzare i motivi giuridici o economici di tale progetto: desidero solo ribadire che da oltre un secolo in tutta Europa i manoscritti conservati in pubbliche raccolte sono un patrimonio inalienabile, che le biblioteche custodiscono e valorizzano per la comunità scientifica internazionale. Non si può pensare di cedere l'antica biblioteca di Reichenau, così come non si può vendere il Colosseo, né abbattere una chiesa gotica o un bosco di querce secolari.
La prego, faccia in modo che al governo del Baden-Württenberg non si debba applicare il passo della Scrittura "Diviserunt sibi vestimenta mea" (Ps. 21, 19).
Con cordiali saluti
Prof. dr. Stefano Zamponi
Presidente del Comité
International de Paléographie latine».
Com este breve artigo pretendemos fazer-nos eco em Portugal do coro de protestos desencadeado na Europa e fora das fronteiras deste velho continente donde irradiou civilização e cultura para todo o mundo contra tão inaudito atentado cultural que, em segredo, o governo de Baden-Württemberg se propunha perpetrar.
Se este mau exemplo vindo a público tivesse surgido num pequeno e pobre estado do chamado terceiro mundo continuaria a ser grave, mas que tenha sido provocado pelo governo de um Estado da República Federal Alemã é verdadeiramente intolerável e não podemos deixar de unir a nossa voz ao grande coro das instituições internacionais especializadas e de a fazer chegar ao governo do Primeiro-Ministro Öttinger e à Embaixada da Alemanha, em Lisboa
Esperamos que ainda haja bom senso e não se concretize tal atentado contra o referido património cultural - que não é exclusivo deste Estado e da Alemanha, mas pertence a toda a Humanidade - e que este péssimo exemplo, vindo da Alemanha, não prolifere.
José Marques
Prof. Catedrático da Universidade do Porto (ap.)
Membro do Comité International de Paléographie Latine
Membro da Comission Internatonale de Diplomatique
Der Beitrag (verbreitet über Apilist) erschien in der Presse in Braga (Portugal).